Acordo Mercosul-UE, simbolismo do acerto de contas com o passado
Em 5 de dezembro de 2024, os presidentes dos países membros do Mercosul e a presidente da Comissão Europeia, que representa os 27 membros do bloco, chegaram ao entendimento político necessário para concluir as negociações e, assim, dar o passo inicial para a implementação do acordo estratégico.
A decisão política favorável tomada pelos cinco presidentes, em termos de substância, se baseia nos textos da parceria acordados em 2019. Certamente, há mudanças feitas nesses textos de 2019 para cá, as quais vamos conhecer quando os textos finais forem tornados públicos. Como já foi dito por alguns, o diabo mora nos detalhes e, por isso, precisamos ver os textos finais para dirimir todas as dúvidas e encontrar algumas certezas.
As negociações foram lançadas em 1999 e, portanto, sua finalização política ter ocorrido tantos anos depois vem, claro, carregada de simbolismos.
A base para conclusão do acordo foi estabelecida em 2019, com a finalização da elaboração dos textos, e a preocupação com movimentos de fechamento da economia em algumas regiões do mundo no futuro próximo fez com que os objetivos estratégicos fossem priorizados em relação aos táticos. Nem a revolta dos franceses, com todos os superlativos típicos do país, desde agricultores nas ruas até CEOs de companhias fazendo declarações agressivas, mudou esse curso. A decisão política de encerrar as negociações e avançar para a nova fase representa um enorme simbolismo positivo. Outro fator simbólico importante no encerramento das negociações nos dias atuais é que estamos sob o governo Lula. Explicarei esse simbolismo adiante.
As negociações, como mencionado, foram lançadas em 1999. Na ocasião, o governo FHC, que tinha visão estratégica e se mostrava favorável à promoção da integração internacional da economia brasileira, trabalhou para lançar duas grandes negociações: Mercosul-UE e Alca (Área de Livre Comércio das Américas). O governo FHC, após mudar o regime cambial brasileiro em 1999, sabia que precisava promover a integração da economia brasileira, sobretudo para aumentar a competitividade e o acesso a novas tecnologias, investimentos e mercados consumidores, especialmente para o setor de manufatura brasileira.
Lula I começou em 2003 com Celso Amorim no comando do MRE. Naquela época, além das duas negociações regionais lançadas, havia a Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). A OMC, hoje menos relevante, era, 25 anos atrás, o foco da corrente no MRE que assumiu a diplomacia no Lula I. Eles defendiam a tese de que o Brasil deveria fortalecer as organizações multilaterais, em vez de priorizar acordos regionais ou bilaterais. Essa visão foi reforçada pelos dois contenciosos movidos pelo Brasil, que foram bem-sucedidos, numa época em que a OMC tinha um sistema funcional de solução de controvérsias: painéis do algodão contra subsídios domésticos dos EUA e do açúcar contra subsídios às exportações da UE.
O chanceler fez de tudo para bloquear as negociações da Alca, sobretudo porque o governo Lula I tinha uma visão ideológica negativa com relação aos EUA. Como resultado, o que alguns especialistas na época, incluindo eu, previram aconteceu: sem a Alca evoluindo, a UE se retraiu e dificultou a negociação com o Mercosul. Estava claro que as negociações Mercosul-UE só avançariam se pressionássemos o bloco, que sempre teve tendências protecionistas, por meio de outra negociação de igual porte e impacto.
O governo Lula I escolheu OMC, matou a Alca e, como consequência, a UE aumentou as exigências, sobretudo reduzindo quotas para produtos agropecuários, de maior interesse para os países do Mercosul. As negociações Mercosul-UE travaram, e a OMC teve o destino conhecido. Ficamos sem nada.
Lula III, e aqui está o simbolismo, tenta corrigir os erros do passado, reconhecendo as escolhas equivocadas do período Lula I. É evidente que, mesmo se as negociações da Alca tivessem sido concluídas, Trump II tentaria minar o acordo de qualquer forma. Porém, seria mais difícil desmantelar um acordo com todos os países das Américas do que o Nafta, envolvendo apenas Canadá e México. Se a Alca existisse hoje, os arroubos protecionistas do Trump II teriam um importante fator de contenção. Imagina se arrependimento matasse.
As negociações Mercosul-UE foram interrompidas, ao que parece, no final do período Lula I. Desde então, houve diálogos, mas nada substancial. Até que em 2019, contrariando Bolsonaro, que tinha uma visão totalmente distorcida e ideológica sobre integração comercial, a ministra Tereza Cristina concluiu a parte técnica da negociação, estabelecendo a base para a decisão política agora tomada em 5 de dezembro.
O MRE evoluiu muito nesses 25 anos e reconhece o risco do protecionismo global. No entanto, o ministério mantém seu perfil conservador, característica intrínseca dos diplomatas brasileiros, treinados para ser cautelosos. Além disso, parte da turma que bloqueou tudo no Lula I ainda influencia a instituição. Mas Lula III sabia que precisava acertar contas com o passado e deu a ordem para finalizar as negociações, o que foi feito. A saída estreita remanescente do passado foi ocupada, o arrependimento foi reconhecido e decisão política e estratégica foi superposta sobre as preocupações táticas e setoriais.
Daqui em diante, precisamos analisar os detalhes. Para o setor no qual trabalho, a eliminação de tarifas tem pouca relevância. O Brasil exporta soja em grão, farelo de soja e algum volume de óleo de soja para a UE. Desses, o farelo é o mais importante, pois a UE representa quase 50% das exportações brasileiras do produto e já goza de tarifa zero. Portanto, não haverá benefícios diretos para nosso farelo. Contudo, haverá vantagens para a proteína animal, já que o farelo de soja está integrado à cadeia de suprimentos das carnes e aves. Assim, celebramos o acordo mais pela proteína animal do que pela proteína vegetal.
Além disso, o acordo Mercosul UE não interfere diretamente em políticas unilaterais da UE, como RED (diretiva europeia de biocombustíveis), EUDR (legislação conta produtos atrelados a desmatamento), CSDDD (diretiva europeia de diligência devida corporativa, ou seja, para empresas individuais com foco em direitos humanos e impactos ambientais) e CBAM (mecanismo de taxa de carbono na fronteira). Todas essas afetam o setor de processamento de oleaginosas brasileiro, seja de forma específica, como RED e EUDR, ou de maneira ampla, como CSDDD e o CBAM, que atingem principalmente multinacionais.
A capítulo-chave para o setor de oleaginosas e biocombustíveis no Brasil é o de comércio e desenvolvimento sustentável. A questão é: quais serão as consequências objetivas desse capítulo? Ele vai validar as políticas unilaterais dos países envolvidos ou impor restrições à sua aplicação, considerando seus potenciais efeitos anti-comércio?
Estamos no aguardo para analisar o que está por vir.
AUTOR
André Nassar
Presidente Executivo